Voluntariado de aventura nos confins do Ceará

Atena e Marlon no parapeito da igreja do céu - vista da cidade ao fundo

Olá Pessoal,

 

Nesse post vamos contar a viagem de duas pessoas cegas meio espertas, porém nascidas e criadas em cidades grandes, que resolveram desbravar o interior do Ceará! Isso mesmo, eu e o Marlon dessa vez fomos convidados pela presidente da Associação Morcegos em Ação a visitarmos e, na medida do possível, contribuirmos com sua escola, localizada na área rural de Ubajara, em plena serra cearense.
Já ouviram falar em voluntariado de aventura? Foi mais ou menos isso.

Claro que rolou de tudo na viagem, desde a conhecida incerteza e expectativa diante do novo desafio, passando por imersão na cultura e gastronomia local, conquista de novas amizades, muito aprendizado, novas técnicas de bengala, alguns medos, até arranhões e os indispensáveis micos!

 

Rumo ao fim do Ceará – Terra das Surpresas

 

A Associação Morcegos em Ação é uma escola preparatória para cegos, com sede no Sítio Moitinga, área rural da cidade de Ubajara, localizada na Serra da Ibiapaba, no Ceará, cerca de 350 km de Fortaleza em direção ao Piauí.
O idealizador norteador de sua fundadora, a educadora social alemã Anja Pfaffenzeller, é levar complemento educacional sócio pedagógico a lugares desprovidos de apoio à educação especial inclusiva. Desde 2013, quando as atividades foram iniciadas, primeiramente na cidade de Sobral e depois em Ubajara, os alunos da escola recebem aulas de mobilidade, atividades da vida diária, informática, braille, apoio ao ensino regular, e outras disciplinas conforme a necessidade e a disponibilidade de instrutores.

Conheci a Anja e o projeto ano passado e, desde então ficou claro para mim que deveria ir para lá tão logo fosse possível a fim de repartir com os alunos um pouquinho de conhecimento e experiência de vida que tenho.
Quanto ao Marlon, assim que estendi o convite, ele aceitou na mesma hora. Logo empurramos literalmente os compromissos das agendas para frente e, mesmo sendo uma data bastante improvável, partimos para lá dia primeiro de maio. A ideia era colaborarmos com o que fosse possível, inclusive contarmos um pouco sobre a nossa vida independente em Sampa.

 

Como teríamos umas 5 horas de janela entre chegarmos ao aeroporto e pegarmos o busão para Ubajara, pesquisei com um colega que mora em Fortaleza alguns possíveis shoppings para passarmos o tempo. O colega lamentou por não estar na cidade naquele dia e, de uma forma mais que acolhedora, organizou que seu cunhado nos recebesse no aeroporto e nos encaminhasse para a rodoviária.

Isso nem é importante, mas vou contar assim mesmo. O avião que pegamos para Fortaleza da Avianca era novíssimo, com uma semana de uso, bem espaçoso e lindão. Ficamos sabendo que ele estava sendo usado experimentalmente em voos de São Paulo à Fortaleza e que em junho começou a fazer Miami!

Ao chegarmos em Fortaleza, já fomos carinhosamente recepcionados pelo cunhado do meu amigo e levados para casa de uma das irmãs da família, mais especificamente uma das irmãs das esposas de ambos. Lá deveríamos permanecer até próximo da hora em que o ônibus iria sair, quando então o cunhado, que a essas alturas também já era nosso amigo, nos deixaria na rodoviária.
Eu nem deveria contar isso, mas a coceira é indomável. Literalmente caímos de paraquedas na casa de uma querida senhora. Tudo o que ela sabia é que ficaríamos lá, das 3 da tarde até umas 7 e pronto… Ah, tudo foi muito em cima da hora, porque conversei com meu amigo no sábado, para já viajarmos na segunda.

 

Marlon:
Deixe que vou continuar, antes que determinada criatura distorsa os fatos.
Na semana imediatamente antes da viagem, ambos trabalhamos muito, tanto em atividades do próprio Blindando quanto, no meu caso, em aspectos do trabalho de conclusão de curso da minha pós graduação, que seria entregue pelos garotos do grupo durante minha estadia no nordeste. Ou seja, isso quer dizer que as 03:30 da manhã do dia em que fomos viajar nós estávamos bem acordados e trabalhando! Dormimos cerca de 4 horas, tomamos um rápido café da manhã e fomos para o aeroporto. O avião era de padrão internacional, mas o serviço de bordo lamentavelmente não. Isso quer dizer que, em um voo de 3 horas e meia, tivemos apenas um sanduíche que deveria ter uns 4 dedos deitados de cumprimento e nada mais. Junte-se a isso as 4 horas de sono e o trabalho que eu estava terminando dentro do avião. Cansaço mental, físico e sono, quando misturados nessa proporção, só podem resultar em uma coisa: fome!
O problema foi que não pedimos para parar em um restaurante e logicamente fomos levados diretamente para a casa da simpática senhora e ela não tinha ideia de que nós estávamos praticamente sem comer nada. Minha expectativa de ter um almoço ou café da tarde oferecidos em tempo hábil se esvaía e o risco de irmos para Ubajara sem comer nada começou a me preocupar seriamente. Encarar comida de rodoviária ou de parada de ônibus não estava nos meus planos, mesmo porque passar mal e dar trabalho em vez de trabalhar não era algo desejado.
Assim, tomei a dura decisão de informar a senhora da nossa situação. Esperei um assunto plausível surgir na conversa e comecei a contar que nosso plano original era almoçar em um shopping em Fortaleza antes de pegar o ônibus. Martelei a palavra almoçar bem enfaticamente e tentei não morrer de vergonha com o que estava fazendo, mas a necessidade de comer era maior. A coitada da senhora apenas disse: “Então vocês não almoçaram!” e saiu em disparada para o fogão a fim de nos preparar algo que me pareceu a melhor refeição que tive em alguns meses.

 

Atena:
Depois de bem comidos, fomos para a rodoviária, que por sinal achei uma confusão só!

 

Marlon:
O ônibus não faria ponto final em Ubajara. Quando fui pegar as passagens, perguntei ao atendente quantas paradas faríamos antes de lá chegarmos. Ouvi uma torrente em bom sotaque cearense de nomes de locais que, simplesmente, não consegui separar uns dos outros. Ao tentar repetir a indagação com o motorista, tive um resultado parecido.

 

Atena:
Lá entramos no ônibus sem saber direito depois de quantas paradas deveríamos descer. O tempo de viagem também variava segundo os outros passageiros, mas o mais cotado foi que deveríamos chegar por volta das duas e meia da manhã. Alguns dos simpáticos companheiros de viagem disseram que nos avisariam, mas confiar é sempre duro nessas circunstâncias. De qualquer modo, lá fomos nós por estradas com determinados trechos horríveis andando de maneira lenta rumo ao nosso destino. Após 6 horas e pouco para percorrer 350 km, fomos avisados de que a próxima parada seria em Ubajara. pedimos para o motorista nos deixar no posto, em vez de na rodoviária, pois o taxista estaria nos esperando naquele local. O motorista prontamente respondeu que devido ao horário só pararia lá mesmo, já que na rodoviária seria muito perigoso! Oi?

De fato o taxista nos recebeu e parecia saber o destino. O clima estava bem agradável, quase friozinho, porque diferentemente de Fortaleza, lá é serra e o clima bem mais ameno.

Para contextualizar, nós ficaríamos hospedados na própria sede da escola, que tem duas casas. Ficou combinado que passaríamos na primeira sede, acordaríamos um voluntário, que nos levaria até a outra casa, um pouco mais à frente.
Ao chegarmos na primeira casa, chamamos bastante e ninguém atendeu. Então o taxista resolveu passar na casa de uma funcionária da escola, também ali pertinho. A moça disse que não tinha como ajudar. Curiosamente perguntamos ao motorista se ele mesmo não poderia nos deixar na segunda casa, e veio a resposta: “O carro não desce até lá”, então perguntamos se ele não poderia simplesmente parar o carro e nos levar, e veio uma resposta ainda melhor: “Eu não vou não, esse trecho é cheio de cachorros e eu tenho medo de cachorros!”
Putz! O celular da Anja não atendia, e o taxista não estava lá com muita vontade de nada! Já estávamos nos preparando para passar a noite em alguma pousada, quando forcei o taxista a passar novamente na primeira casa e bater de novo. Finalmente um rapaz acordou e disse que nos ajudaria até lá. Realmente os últimos 50 metros são bastante esburacados, e talvez o carro não passe com tranquilidade, mas não me lembro de nenhum cachorro, não pelo menos ali…
Felizmente a Anja estava mais acordada e prontamente nos abriu a porta. Ao entrarmos comentei que queria tomar um banho quente para relaxar, a final a viagem tinha durado umas 19 horas. Quando veio a última surpresa do dia: “Melhor tomar banho amanhã porque a água é fria!”
Aiaiaiaiaiaiaiaiiaiaiaiaiaiai!

 

Rotina

 

No dia seguinte, ficamos conhecendo alguns outros detalhes da vida diária no local. Dentre eles, o fato de que o abastecimento de água é realizado a cada dois dias uma vez que a água é proveniente de um poço comunitário. A casa estava esperando por uma turma de mais de doze pessoas, e precisaríamos fazer com que a caixa de água durasse os dois dias.
Os alunos foram chegando e fomos conhecendo um pouco mais de suas histórias. Havia, além de nós, outros dois voluntários. Um deles era o Jonas, um jovem alemão filho de pai brasileiro, que veio passar alguns meses no Brasil para aprimorar o português, aquele mesmo que custou acordar logo que chegamos. O outro integrante era um digníssimo cavalheiro português cego, que, juntamente com o Marlon, formaram a dupla fiasquenta do grupo.
Em geral a rotina da escola foi aproveitar o máximo possível com aulas, conversas e vivências instrutivas. Na medida do possível procuramos conhecer os alunos e tentamos passar um pouco da nossa experiência e da nossa visão de mundo. O Marlon ministrou aulas de informática, eu algumas aulas de inglês e participei da organização de dinâmicas de sensibilização com pais e convidados.

 

Uma das primeiras coisas que tive que lidar foi com a comida diferente: o feijão consumido é geralmente feijão verde, comem bastante farofa de cuscus, tem uma salada lá que parece alface mas o gosto é esquisito.
Entretanto, tudo levado em conta, posso até dizer que senti orgulho de mim, comi o que tinha na mesa sem ficar pensando muito no parmegiana de todo sábado.

 

Marlon:
Opa opa, mais ou menos, freia essa modéstia aí… Primeiro que ela tinha um estoque secreto de bolachas e chocolates! Segundo, foi no mercado e ajudou a comprar ingredientes, fez uma lasanha dando a desculpa que era para os alunos!
Não contente assumiu a responsabilidade de fazer o bolo para o aniversário da diarista, só para fazer bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro!

 

Atena:
A escola funciona aproveitando toda e qualquer oportunidade de atividade para ensinar a um ou mais alunos alguma coisa.
Como um dos objetivos da escola é ensinar mobilidade, quando era necessário resolver coisas administrativas na cidade, já aproveitávamos para fazer uma excursão com vários alunos e voluntários para treinar a locomoção.
Para se chegar ao centro da cidade, pega-se uma lotação ou topic. Para pegar a topic no entanto, é necessário caminhar cerca de uns 2 KMs por uma estradinha de terra até a pista de asfalto. No meio do caminho pode inclusive ter pequenos alagamentos, que chegam até mais ou menos na altura da canela. As vezes em que me recusei a usar chinelo, ensopei o sapato na certa. O portuga por sua vez, ensopava o sapato e a meia sempre, porque se recusava a ir na cidade de chinelos!
Como frequentemente caía uma chuva de tarde, a volta era sempre mais emocionante, Não é mesmo Marlon?
Daqui a pouco ele conta.

Em uma dessas idas à cidade, conhecemos parte do centrinho, fizemos compras e tomamos sorvete. O serviço bancário costuma ser precário. Travei vários caixas automáticos do banco tentando mostrar para os alunos como consultar saldo e sacar dinheiro de maneira independente, porque os terminais não estavam configurados adequadamente. Observei que os degraus das ruas são bem mais altos do que os que costumamos ter por aqui. O Marlon descobriu que não havia faixas de segurança para pedestres na cidade ao indagar pela localização delas a um habitante local.

 

Reflexões, por Marlon

 

No mais, os dias corriam dentro do princípio de normalidade estabelecido: aulas, refeições, reuniões, conversas e sono. Entretanto, gostaria de falar sobre alguns aspectos do voluntariado de aventura, se podemos chamá-lo assim.
Em primeiro lugar, reconhecer que não conhecemos o lugar onde estamos e suas regras como os locais conhecem é uma questão de sobrevivência ou de evitar trapalhadas. Nosso amigo português, por exemplo, se recusou a seguir os conselhos do pessoal de ir para uma cachoeira já com a roupa de banho por baixo, e chegando lá começou a indagar onde estavam os trocadouros, tão práticos e comuns em Portugal!
Da mesma forma, precisamos muitas vezes nos acostumar com modos de vida diferentes dos nossos. Usar chinelos, por exemplo, para ir a cidade, algo considerado brega em grandes centros, era praticamente essencial em Moitinga, dado que precisávamos andar por água e lama ao longo do caminho para chegar ao ponto de ônibus. Querer fingir que as coisas são, ou obrigá-las a serem como são na sua cidade ou região é um dos piores erros que se pode cometer neste tipo de passeio. Na melhor das hipóteses pode te causar frustração e sofrimento e na pior pode te colocar em encrencas sérias…
Em segundo lugar, é preciso estar preparado para assumir funções que nem sempre correm na prática como correm na teoria. Eu, por exemplo, precisei estar psicológica e pedagogicamente preparado para ser professor, coacher e mentor e isso não bate com a minha formação, muito mais técnica. Para conseguir atingir meus objetivos, precisei muito da ajuda de Deus e também de aprender de forma rápida e pragmática determinadas coisas, fazendo correções na rota das atividades que, se não foram ótimas, foram suficientes. Aprender a desistir do ótimo em detrimento do bom e prezar pelo eficiente em vez do perfeito é essencial. É necessário muita reflexão, preparo e a cima de tudo humildade antes de se aventurar em um projeto com essas características. Se não se sentir maduro e seguro o suficiente, vale a pena esperar mais algum tempo.
Em terceiro lugar, é preciso ter a capacidade de se adaptar às restrições e modus operandi do local onde você está. Viver entre 12 cegos em uma mesma casa tem a sua curva de aprendizagem, vamos a um exemplo prático: quando chove, a prioridade é colocar as roupas que estão no varal em local abrigado. A ordem e localização das roupas portanto muda e é normal que cada responsável procure por suas coisas. Isso gerou várias situações engraçadas como quando nosso amigo portuga saiu entrevistando todos da casa para saber se não tinham visto ou se sabiam onde estavam suas calças!

 

Passeios

 

Atena:

Mas nem tudo foi trabalho. No sábado dia 6 de maio fomos em uma espécie de pau de arara para uma cachoeira. O lugar é bem legal, tem uma barragem onde dá para tomar banho de forma bem segura. Depois fomos andar pelas proximidades da cachoeira onde passamos por pontes sem proteção, pisamos em pedras escorregadias e outras coisas do tipo. Nessa oportunidade, estávamos sendo guiados pelo Jonas, já que cada vidente levava um grupo de cegos. Eu mesmo nunca tinha explorado uma região dessas com a bengala, e um guia só consegue orientar vários cegos ao mesmo tempo porque todos andam praticamente sozinhos.

Após a cachoeira eu e o Marlon fomos para uma pousada em vez de voltar para a escola. Decidimos jantar fora e nem vou comentar que o macarrão a bolognesa estava fantástico!

 

Marlon:
Outra coisa que foi muito apreciada naquela noite …

Atena:
Olha, melhor você ficar quieto …

Marlon:
… foi um banho quente, algo que não tínhamos a quase uma semana!

 

Atena:
As 5 da matina fomos acordados por um grunhido estrambólico. Parecia uma bexiga furada ou um clarinete desafinado. Descobrimos que se tratava de um jovem casal de pavões que embelezavam a paisagem!

 

No domingo, dia 7 fomos, juntamente com uma voluntária guia, conhecer o Parque Estadual de Ubajara. Fizemos uma bela trilha, passamos por pontezinhas, outras pontes pênsil com madeirinhas – aquelas de arvorismo, tocamos em cipós, sementes e árvores típicas da região, vários cocos e coquinhos que não consegui memorizar todos os nomes – babaçu, macaúba, jatobá. Vimos um buraco de tatu! e o Marlon entrou em uma cachoeira que ficava ao final da trilha. Fizemos todo trajeto utilizando a bengala e isso facilitou bastante o trabalho da guia.

Cansados, voltamos para a pousada onde enchemos novamente a barriga com galinha caipira, pirão, e baião de dois.

 

Na terça dia 9, fizemos, com vários alunos, uma visita à cidade de Viçosa. Esse passeio foi particularmente muito bom. Estávamos em 11 pessoas, sendo que somente o Jonas enxerga, e, só interferiu quando foi muito necessário.
Visitamos a lagoa, em seguida a Igreja do Céu com seus 360 degraus. Brincamos em uma academia ao ar livre e também em um parquinho para crianças, que nesse caso éramos nós!

Atena e Marlon no parapeito da igreja do céu - vista da cidade ao fundo

Descemos a escadaria da Igreja debaixo de chuva e então tivemos que nos esquentar na Casa dos Licores! Esse é um local tradicional muito bacana, com inúmeros tipos de licores e de doces caseiros, além de biscoitos e artesanatos. Ganhamos de presente da dona um pífano, pois seu pai costumava tocar e produzia seus próprios instrumentos.
O pífano é uma pequena flauta transversal, feita de materiais como bambu, taquara, taboca, osso, caule de mamoneira ou, ainda, como é mais explorado hoje em dia, com cano de PVC, uma alternativa para a escassez de matéria-prima natural. Possui sete furos, sendo um para o sopro e seis para produção das notas. É um instrumento muito comum no nordeste, utilizado para animar festas e eventos.

 

Plantão médico, por Marlon

 

Além de todas as atividades que aconteciam na escola, eu ainda precisava ajudar meu grupo com o trabalho na pós graduação, pois estávamos a ponto de entregar o TCC. E quando eu fazia isso? Se você pensou nas madrugadas, meus parabéns, você está correto. Especificamente no dia anterior a ida para Viçosa, trabalhei cerca de doze horas nas atividades da escola e mais umas duas horas na madrugada fazendo coisas da pós. Dormi incríveis duas horas e me levantei, cheio de ânimo para ajudar a conduzir o passeio, com todos os músculos do meu corpo doendo e ameaçando a tontear perigosamente a cada passo que eu dava até ficar finalmente acordado. O banho frio que tomei cerca de sete e meia da manhã com a temperatura em uns 15 graus ajudou bastante, devo admitir. O passeio correu muito bem, mas na hora de voltar eu dormi profundamente na topic que nos trazia para Moitinga. Fui acordado nem sei por quem na hora de descer e penosamente peguei uns seis quilos de compras que havíamos feito na cidade.
A estrada de terra pela qual iríamos voltar estava completamente escura e havia chovido muito durante o dia. Não era, de maneira alguma, prudente que nosso grupo majoritariamente feminino se demorasse ali. Assim, os locais empregaram um ritmo extremamente veloz na sua caminhada. Quanto a mim, com a bengala em uma mão e seis quilos em outra, esperando pelo próximo buraco que poderia aparecer do nada e completamente zonzo de sono, a coisa era ligeiramente mais complicada. Não que eu me importasse: caso soubesse o caminho de cabeça, simplesmente levaria meu tempo para chegar. Mas o pessoal da região andam por uma estrada de terra e, do nada, sem qualquer referência, viram e entram em uma outra estradinha ainda menor. Se eu perdesse essa entrada, poderia muito bem ficar andando perdido no meio da noite vazia, escura e molhada até sei lá eu quando. Assim, de maneira meio capenga, fui tentando me arrastar atrás dos atletas, até chegar em um local onde a água dava na parte alta de minha canela. Percebi que os demais se demoravam contornando a enorme possa e calculei que se eu fosse pelo meio desta poderia me aproximar deles novamente, o que para mim era estratégico. O problema foi que meus chinelos começaram a ficar presos na lama, e perdê-los e continuar descalço era uma opção muito ruim. Comecei a ficar razoavelmente longe do grupo novamente. Saí da possa vagarosamente e fui até a lateral desta, em um barranco que subia. Em total desespero, me lembrei que havia uma cerca de arame farpado onde eu poderia me agarrar a ponto de não cair na água. Os seis quilos de bagagem em sacolas faziam uma pressão razoável para que isso acontecesse. Então me agarrei aos arames e, enquanto minhas mãos eram cortadas em múltiplos locais, fiz a travessia. Usar a bengala com a mão cortada no restante do caminho foi dolorido para dizer o mínimo. Consegui chegar na escola e, mesmo sem lavar os pés, caí na cama e dormi quase imediatamente.
E a atena? Simplesmente desapareceu com os outros e me deixou sozinho nessa encrenca.

 

Atena:
Pobre paulistano fiio de vó!!
Não pensem que sou tão desalmada, no caminho perguntei várias vezes se ele queria ajuda, ele negou! Provavelmente já estava emburrado, e quando chegou na escola não dormiu imediatamente não, fez várias malcriações antes!
Devo ainda fofocar para vocês que nessa mesma possa gigante, o portuga estava quase se safando sem se molhar, quando a Anja de pura sacanagem o apressou e o puxou pela mão, fazendo com que o pobre afundasse até aos joelhos!

 

Retorno – Parte 1 Quase Retorno

Resgates, por Marlon

 

Quinta-feira, dia 11, tivemos aula normalmente de manhã e a tarde fomos, a Anja (se pronuncia Ânia) e eu, para a cidade resolver alguns assuntos administrativos da escola. Nessas ocasiões, a fim de não precisarmos ir até o ponto de ônibus, pegamos carona com o ônibus escolar municipal que, neste horário, leva as crianças para as escolas regulares da região. O motorista, chamado Marcílio, é bastante amigo dos alunos e membros do projeto Morcegos em Ação. Quando disse a ele que iríamos embora para Sobral naquela mesma tarde, ele nos ofereceu nova carona. Iria passar por Moitinga vazio por volta das 17:30 em seu caminho de retorno e poderia nos deixar na rodoviária. Dissemos a ele que infelizmente não daria tempo, pois o ônibus sairia às 17:40 e por isso pegaríamos um táxi. Nos despedimos muito e seguimos nosso caminho. Mais tarde, já de volta a Moitinga, prezando pela viabilidade e pela economia, decidimos que a Atena, o Jonas e o portuga iriam com as malas de todos nós para a rodoviária de táxi enquanto que a Anja e eu iríamos de transporte coletivo. Assim, deixei toda e qualquer coisa que eu tinha, excetuando-se o celular, a bengala e uma nota de cinco Reais que iria usar para pagar a topic. A tarde estava muito agradável, e uma leve brisa refrescava o caminho. Dois minutos antes de chegarmos no ponto, ouvimos a topic passar. Embora não fosse o ideal, ainda podíamos pegar a próxima, que deveria chegar cerca de 15 minutos depois. Chegamos ao ponto e senti um pingo cair em mim. Ia perguntar para a Anja se ela tinha sentido algo, quando uma profusão de pingos se precipitou e, logo depois, uma chuva torrencial se abateu sobre nós. Sem qualquer proteção mais forte, nos abrigamos em baixo de uma precária telha e esticamos nossas bengalas para a frente, a fim de sinalizar ao condutor da lotação que estávamos esperando por ela, como se houvesse qualquer outro motivo para dois cegos estarem no meio da chuva parados em uma auto estrada que cortava o imenso vazio. Mesmo assim, ouvimos consternados a topic chegar e passar indiferente, por mais que acenássemos e chacoalhássemos bengalas e mãos. Ironicamente, após termos perdido nossa chance de chegar a tempo na rodoviária, a chuva cessou, tão veloz quanto começou. Nossos celulares, completamente ensopados mesmo que mantidos dentro do meu bolso e da bolsa dela, ainda funcionavam. Avisamos os garotos de que deveriam seguir viagem sem nós. Eu estava me preparando para dormir na casa de uma conhecida da Anja, com as roupas ensopadas e morrendo de frio (banho quente não rola, lembra?) e estávamos acertando os detalhes de como iríamos no dia seguinte, quando um alegre veículo diminuiu a sua marcha e a Anja começou a gritar de pura alegria. Adivinha quem era? Exatamente, o Marcílio! Abriu a porta, feliz da vida, e gritou para que entrássemos. Só me lembro de gritar: “senta o pé Marcílio … Vamos nessa!” e sentir o ônibus puxando forte a primeira e depois as demais marchas rumo a rodoviária. Felizmente, o ônibus para Sobral também havia atrasado e nós estávamos na frente dele, pois ele também viria pelo mesmo caminho.
Chegamos na rodoviária e, depois de eu ter me enxugado algo precariamente, seguimos viagem.

 

Atena:
Em Sobral, rolou aí alguns stresses no hotel quando chegamos, mas comemos uma boa macarronada e então já me acalmei.

Particularmente não guardo muitas boas lembranças dessa cidade infernalmente quente e meio desleixada. O evento ocorreu normalmente na sexta de manhã. Retornamos ao hotel, fomos no centro comer pastel, conhecemos uma praça e voltamos para pegar nossas coisas e irmos para a rodoviária.

Marlon: Apenas para constar, a camisa polo que usei durante a chuva no dia anterior foi extendida em uma cadeira no quarto do hotel. Na sexta-feira a tarde ela ainda não havia secado.

 

Atena:
Para fechar com chave de ouro meio duvidoso, ao irmos do hotel para a rodoviária, nossa mala fez o favor de se desintegrar. Apesar disso, a viagem para Fortaleza seguiu sem maiores problemas. Entretanto, por causa disso, eu tive que gastar a manhã de sábado indo a um shopping para comprar outra mala.

 

À noite o passeio foi mais interessante. Juntamente com uma cara colega de Fortaleza que nos hospedou, mais a Anja o portuga e o Jonas, fomos passear no Dragão do Mar, um centro de arte e cultura, que abriga museus, galerias, espaços cênicos, salas de cinema, planetário, anfiteatro, auditório, praça para shows e restaurantes.

No Museu da Cultura Cearense, uma simpática educadora nos mostrou a exposição Miolo de Pote, com algumas coleções de utensílios de barro. E, mesmo estando fechada para o público, ela nos levou na exposição Vaqueiros, que retrata o quotidiano do sertanejo. Encontramos recursos de acessibilidade como textos em braille e em letra ampliada, e pudemos tocar na maioria das peças.
Para saber mais sobre o Museu e sua programação, visite o site
http://www.dragaodomar.org.br/espacos.php?pg=mcc

Para terminar a noite e a viagem, fomos caminhar no calçadão da AV. Beira-mar, uma região na orla da praia muito agradável, com barraquinhas, barzinhos, feirinha de artezanato e a brisa do mar.

 

Retorno – Parte 2 O Retorno

 

No domingo, chegamos as 9:00 h no aeroporto, para pegar o voo das 10 e pouco. Fomos embarcados prioritariamente antes dos demais, e quando entramos no avião sentimos um cheiro bem esquisito, literalmente um cheiro de merda queimada. Logo já veio um atendente nos informar que provavelmente um filtro de óleo do motor estava falhando e por tanto o embarque iria atrasar, mas que se quiséssemos poderíamos aguardar na aeronave mesmo. De repente o próprio comandante veio conversar com a gente e pedir que aguardássemos mais alguns minutos. Até que o comissário nos informou que precisariam desligar o ar condicionado e então todos deveriam sair. Voltamos para a parte interna do portão de embarque, onde deveríamos aguardar. E foi aí que começou a ceção barraco. A companhia prometeu dar maiores informações às 11:45, e já era meio-dia e pouco e nada. Uns esbravejavam, outros ameaçavam, a despachante cobrando o pessoal da companhia para dar satisfação. Uns tinham conexão para o Chile, outros para a China e todos queriam com razão uma explicação. Perto das 13:00 h finalmente anunciaram que o voo estava cancelado, e imediatamente todos os despachantes começaram a responder: “Agora é lá com o balcão da companhia”. Fomos realocados no voo das 16 e pouco… Pelo menos nos deram um voucher do Bob’s!

Na chegada em São Paulo, no momento de quase pousar, o avião arremeteu! Isso mesmo, o avião estava quase pousando e subiu novamente… Se deu medo? Bem, não deu tempo de ter medo porque quando percebemos já estava feito e pronto. Ficamos apreensivos por uns minutinhos até o comandante esclarecer e sabermos que não se tratava de problemas técnicos na aeronave, a final né…
O comandante percebeu que a outra aeronave que tinha acabado de pousar estava muito próxima na pista e achou mais seguro arremeter!.

Eu não costumo ter pressa de chegar em casa, mas dessa vez foi inexplicavelmente reconfortante abrir a porta, sentir a festa das cachorrinhas e claro, deitar na minha cama espaçosa!

 

Epílogo

 

Interagir e ensinar alunos capazes e aplicados não tem preço. Mais do que apenas nos divertir, temos que por vezes ir a campo e deixar a nossa marca. Se todos fizermos a nossa parte, conseguimos ajudar a melhorar muito a realidade que nos cerca. Quanto a nós, grande parte da bagagem que trouxemos de volta não veio nas malas; veio na alma, no coração e nas sensações!
Fomos deixar um pouquinho de nós e trouxemos muito de muitos!

 

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